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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A Habitante do Espelho


E quando o cansaço então pesou em suas pálpebras e joelhos, acomodou-se no objeto estofado mais próximo que encontrou. Jogou ao lado sua bolsa e afagou-se no sofá que a recebeu de braços abertos, que a aceitou para chorar em seu ombro e até enxugou suas lágrimas.


O que lhe afligia parecia ser algo simples de resolver, e o fato de saber isto a irritava mais ainda. Tinha a faca e o queijo na mão, como costumava dizer sua mãe, e no entanto, por mais que o anseio por aquele sabor fosse grande, não conseguia agir, seria medo?


Sem que percebesse, este mal sorrateiro tomou conta de sua mente, que um dia foi jovem e cheia de sonhos, trancou-a sob forte cadeado e então comandou, fazendo-a acreditar que não podia, que não detinha poder algum sobre sua própria vida. As lágrimas encontravam o caminho em sua pele e fluíam sem empecilhos.


Em seu choro manifestou toda angústia de sua pobre liberdade presa, de sonhos abafados e vontades reprimidas, e o piedoso sofá a consolou com seu sábio silêncio já que ela não queria mais ouvir palavra alheia alguma, ela desejava ser ouvida, ouvir todos os murmúrios e suspiros presos tão fundo em suas entranhas, cada pedaço de si, reprimido, queria ter sua voz, sua vez.


Quando foi que perdeu a voz, pensou, como foi que aceitou e pôs-se de luto por seu próprio íntimo? Seu Eu adormecido então urrou a verbalização de seu pesar; um ruído primitivo e indistinguível, espremido forte vindo de dentro que foi logo abafado pelo estofado e no momento que seguiu o som, sozinha se viu.


Empurrou-se para frente do espelho e encarou aquela carcaça que arrastava consigo para todo o lado. A carcaça que todos os dias pintava e arrumava para que pudesse, talvez, sentir um pouco do que eles chamavam de belo.


E assim, se encarando, sem perceber abriu a torneira e deixou a agua fluir, molhou a ponta dos dedos com aquele líquido incolor e levou-o até seus olhos para impedi-los de julga-la.


Logo que a visão voltou, ainda turva e ardida, avistava a maquilagem borrada, os defeitos descobertos, expostos a quem a olhasse, e então entristeceu.


Devagar e quase delicada abriu o estojo que se apoiava sobre a pia, valeu-se dos apetrechos que precisava e novamente cobriu a face com a tinta milagrosa que escondia suas imperfeições, fez-se então anormal, perfeita. Tateou as bolsas sob seus olhos dissipando as lágrimas que por ventura restaram; deixou no espelho aquela que a encarava e questionava, pegou suas coisas e saiu, de volta ao lugar em que perfeitamente, e até sob medida, se encaixava.



Carol.

A Vantagem

Esta folha em branco que somos ao nascer é logo tocada pelo destino. Incrivelmente suscetível, pura e ingênua é jogada em meio aos adultos, no meio deste sedento mundo.

E uma vez que a sociedade cunha a ponta grossa e áspera de seu lápis em nossa fina carne, deixa marcas tão profundas e fortes que corpo e marcas se tornam um, inseparáveis, indivisíveis.

Este ser livre de vícios, de conceitos e preconceitos é facilmente moldável e envolto então por malícia.

No entanto temos uma vantagem em relação a esse meio, uma única parte de nós que temos a capacidade de proteger e manter pura por toda a vida, nossa alma. Há que lutar por ela e não permitir que nada nem ninguém a toque. Basta querer e defender com garras esta que carrega todo o Bem humano, que detém e desperta nossos sonhos, o único vínculo capaz de nos despertar e trazer de volta em momentos de tentações e turbulência.

Guardemo-la com carinho e em segurança dentro de nós, porém não nos esqueçamos de dar a ela espaço o suficiente para que possa provar e por em prática, sempre, seu imensurável valor. Façamos dela pureza e guia de nossas ações, pois o futuro depende de quem e o que somos hoje, tornemos o agora a semeadura do que desejamos colher para que então possível seja nos manter puros, sinceros do nascer ao partir e sem esforço algum.
Carol.